O
artista de circo é um otimista por vocação. A natureza itinerante do trabalho,
os perrengues e os riscos nunca foram um obstáculo para quem vive do picadeiro.
Por isso, a história a seguir é mais sobre esperança, força e companheirismo do
que sobre a tragédia pandêmica que fechou as lonas e bilheterias da cidade.
“Respeitável público”, repetiu Hudson
Rocha, o palhaço Kuxixo, tataraneto do palhaço Polydoro (José Ferreira Polydoro
– um dos pioneiros do circo brasileiro), no picadeiro vazio do circo Ilusion
(montado em frente ao sambódromo do Anhembi). A voz de Kuxixo ecoou por uma
plateia vazia, ricocheteou por tábuas e objetos cênicos, até se transformar em
uma reflexão. “O artista de circo se alimenta do aplauso. Temos fome de
aplauso. Nós vivemos de gente, vivemos da presença das pessoas ao nosso
redor”, afirmou Kuxixo.
Não à toa, o coronavírus mudou o cotidiano e a
rotina do circo, atingindo de forma implacável os artistas. “No ano
passado, no início da pandemia, tínhamos acabado de chegar com o circo a Taipas
(região no noroeste de São Paulo). Nosso primeiro final de semana foi muito bom
– o que indicava que aquela seria uma ótima temporada. Estávamos cheios de
esperança”, lembrou Kuxixo.
Mas o “zunzunzum” sobre a covid começou
a acender um sinal vermelho entre os artistas. “Parou tudo. Tivemos que
interromper nossa temporada. A pandemia pegou a arte em cheio. O circo, a mãe
de todas as artes, é uma das que mais vêm sofrendo. Vivemos de bilheteria, não
tem espetáculo, não tem dinheiro”, disse o palhaço.
Como, então, estão sobrevivendo os palhaços,
trapezistas, equilibristas, mágicos e outros? Claro, nesse período, alguns
projetos online, editais e programas de transferência direta de recursos foram
acessados por uma parte deste contingente de artistas – que, segundo o Portal
Brasileiro da Dados Abertos, estariam espalhados por 651 circos pelo País.
“O problema é que, quando ganho um edital, um
projeto, outros tantos deixam de ganhar. É preciso uma ação global para toda a
categoria”, argumentou Kuxixo.
Então, a sobrevivência da maioria dos artistas
circenses depende das próprias forças. Muitos estão temporariamente vivendo
como ambulantes – e podem ser encontrados pelas ruas, vestidos de palhaço,
vendendo brinquedos e balões (principalmente aqueles animais feitos com balões
entrelaçados).
Além disso, a experiência com comida de circo é um
fator importante. Hoje, profissionais do circo também estão vendendo
algodão-doce, pipoca, maçã do amor, biscoito de polvilho e tudo aquilo que faz
parte do universo gastronômico onde vivem.
O trapezista Jhonatan Cáceres (e a família, a
mulher, também trapezista, Deise Olivares, e a filha de 5 meses, a Milena) é um
dos que estão sobrevivendo como ambulante no momento. Em alguns dias da semana,
ele carrega o próprio carro com o que for possível vender e sai pela cidade.
Mas a trajetória de Cáceres apresenta uma outra
característica marcante da comunidade de circo: a união. Com a pandemia e o
fechamento temporário do circo em que trabalhava no Rio de Janeiro, o
trapezista caiu na estrada.
Ao chegar a São Paulo, estacionou o seu trailer no
terreno em que hoje está montado o circo Ilusion (ao lado do sambódromo).
“Fui muito bem-recebido. O artista de circo é acolhedor. Mesmo não fazendo
parte da trupe, pude estacionar minha casa aqui”, contou. Além de Cáceres,
outras duas famílias moram hoje no terreno do circo – uma tradição que tem sido
muito útil em tempos de dinheiro curto para coisas básicas, como o aluguel, por
exemplo.
O equilibrista Fabio Stevanovich tem aproveitado
os dias vazios de circo fechado para treinar e treinar seus números.
“Apesar da pandemia, treino de 5 a 6 horas por dia. Não paro. Minha maior
preocupação no momento não é com o dinheiro. Ele vai ser consequência do meu
trabalho. O que me dói é a falta de público e a impossibilidade de apresentar
minha arte para as pessoas”, lembrou.
Na mesma linha, vai o especialista em globo da
morte Dione Meirelles. “Eu vivo do globo da morte. O globo da morte é a
minha vida. O que representa a morte é esse vírus que nos impede de
trabalhar”, comenta. “Agora, vivo de vender maçã do amor, biscoito…
e também das pessoas e de ONGs que acabam nos ajudando”, completou.
Auxílio
O grupo conhecido como Anjos da Leste tem feito
entregas de cestas básicas em circos por São Paulo. “A gente já atua em
comunidades carentes, mas notamos a situação dos circos, dos artistas que vivem
no próprio espaço ou que estão sendo dispensados por falta de espetáculos. A
pandemia tem sido muito dura com essas pessoas. Começamos com alguns circos da
zona leste, mas estamos fazendo um levantamento para entrega de mais cestas
básicas”, conta a cofundadora do projeto, Mayra Alegro. Quem quiser colaborar
com o grupo pode procurá-lo no Instagram(@anjosdaleste).
Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de
Memória do Circo, ligado à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, fala
da importância de preservar a história do circo. “Mesmo com todos os
livros e pesquisas, é uma história basicamente oral. No Centro de Memória,
trabalhamos pela preservação dessa cultura em um momento tão delicado como
agora”, disse. No dia 24 de maio, o Centro de Memória do Circo também vai
lançar o Programa Emergencial da Memória do Circo Brasileiro, que consiste no
registro de entrevistas realizadas por artistas circenses.
Para o segundo semestre, está prevista a
realização do FIC (Festival Internacional do Circo – com a colaboração da
Associação dos Amigos do Centro de Memória do Circo e apoio da Secretaria de
Cultura). A Secretaria também lançou, em fevereiro, a 6ª edição do Fomento ao
Circo, com orçamento de R$ 3,6 milhões. As inscrições já foram encerradas.
A Volta
O palhaço Kuxixo, que, segundo ele mesmo, é sempre
o primeiro a chegar e o último a sair do picadeiro, avisa que tem esperança de
retomar as atividades até o Dia das Mães – com promoções e novidades.
“Minha preocupação como artista de circo não é morrer: é sobreviver. É da
natureza do circo renascer, retomar, recomeçar. A vida do circo é recomeçar
sempre, recomeçar em cada praça, em cada cidade. E é isso que vamos fazer assim
que for possível. Vamos recomeçar mais uma vez”, entusiasma-se Kuxixo que,
agarrado à lona amarela que protege o seu picadeiro, repetiu: “O circo vai
responder. O respeitável público quer sair de novo. O circo não vai ser
derrubado, o circo precisa ser tombado”.
Salve o circo
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