O
cinema brasileiro tem data e local de nascimento. Reza a lenda que, no dia 19
de junho de 1898, o italiano Afonso Segreto, a bordo do paquete Brésil, teria
registrado em sua máquina de filmar imagens da Baía de Guanabara e arredores.
Pesquisas posteriores puseram em dúvida tal filmagem. Nunca ninguém a viu e nem
existem registros confiáveis de que tenha sido feita. O fato é que Afonso e seu
irmão Paschoal tornaram-se prósperos empresários do ramo do entretenimento no
Rio de Janeiro. A história é polêmica até hoje, mas, como naquele famoso filme
de John Ford, se a lenda é melhor que o fato, imprima-se a lenda.
A verdade, essa sim comprovada, é que o cinema chegou bem cedo ao País e nele
se desenvolveu com velocidade. Teve seu esplendor, sua belle époque, como se
diz, nas primeiras décadas do século. Mais tarde, chegou a conhecer períodos
poderosos de comunicação com o público, como nos anos 1970, quando conseguiu
dominar cerca de 35% do mercado interno com filmes de apelo popular como Dona
Flor e seus Dois Maridos e A Dama do Lotação. Antes disso, já havia conquistado
a plateia popular com as famosas chanchadas da Atlântida, nas quais brilhava a
dupla Oscarito & Grande Otelo. Teve períodos de muito prestígio no
exterior, como na época do Cinema Novo. Tentou virar uma indústria, tendo seu
ápice nesse empreendimento com a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, de
duração relativamente curta.
O cinema brasileiro também levou grandes tombos, como o da época do governo
Collor, em 1990, quando foi na prática extinto durante alguns anos.
Renasceu a partir de 1994 no processo chamado Retomada e acabou por se
consolidar num patamar bastante razoável em termos de produção – cerca de 150
longas-metragens ao ano -, embora os números do público ainda deixassem a desejar.
Esse trabalho de recuperação foi possível graças a incentivos fiscais,
legislação própria e o esforço da categoria no sentido de que a produção se
estabilizasse sem mais sofrer solução de continuidade, como no passado.
Ainda que com problemas a serem resolvidos, o caminho do cinema brasileiro no
começo dos anos 2000 parecia bem promissor. Esse percurso chegou a uma espécie
de cume em 2019, com forte presença no Festival de Berlim e a premiação em
Cannes de Bacurau e A Vida Invisível. São selos de qualidade de dois dos mais
importantes festivais de cinema do mundo.
Como é então que chegamos a este 19 de junho de 2020 sem nada a comemorar?
Depois de viver o ciclo virtuoso dos últimos anos, a produção encontra-se
parada – e não apenas por efeito da pandemia do novo coronavírus. É que as
fontes de financiamento do audiovisual foram estranguladas e paralisadas por
pressão de um governo hostil à cultura como um todo e ao cinema, em particular.
Como se sabe, a arte costuma ser crítica. E crítica é o que menos suporta um
governo de vocação autoritária.
Se a tática de Collor para acabar com o cinema foi a extinção numa penada de
órgãos como Embrafilme, Concine e Fundação do Cinema Brasileiro, a de Bolsonaro
opta pela asfixia lenta. Os órgãos de sustentação ao audiovisual – como a
Ancine – não são dissolvidos, mas se encontram paralisados, presos a garrotes
burocráticos. Verbas como as do Fundo Setorial do Audiovisual, que abastecem os
principais editais para novas produções, continuam bloqueadas. Após ameaças de
colocar um filtro ideológico nos concursos de projetos cinematográficos, o
governo preferiu a solução mais fácil de pisar no tubo de oxigênio que abastece
o setor para que ele possa rodar. De tal modo que, ninguém, na categoria
cinematográfica, acha-se em condições de prever o que acontecerá quando, ao
final da pandemia, as atividades puderem, em tese, ser retomadas. Talvez já não
haja o que retomar. Esse efeito do sufoco financeiro será sentido nos próximos
anos, já a partir de 2021.
Talvez o sintoma maior da falta de sintonia do governo federal com o
audiovisual seja o descaso com a Cinemateca Brasileira. A instituição teve seu
embrião no Clube de Cinema, criado por Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio
Candido e Décio de Almeida Prado, entre outros, em 1940. Em 1956 tornou-se a
Cinemateca Brasileira e, com o passar dos anos, principal guardiã da memória
audiovisual do País. Em seus melhores tempos, virou referência no restauro de
filmes antigos. Em sua sede em São Paulo, ganhou duas salas de exibição, uma delas
de alta qualidade técnica.
Enfim, a Cinemateca é, ou era, um dos raros pontos de excelência do País.
Agora, após virar prêmio de consolação para Regina Duarte, em sua saída, sem
jamais ter assumido, da secretaria de Cultura, encontra-se ao deus-dará. A
falta de uma direção técnica à altura da sua complexidade, e sem dinheiro
sequer para pagar as contas de energia elétrica, coloca em risco um valioso
patrimônio de material audiovisual.
A Cinemateca foi fruto de muita luta por parte de idealistas, que desejavam
construir um país e, por isso, sabiam que a conservação da memória histórica é
peça fundamental do marco civilizatório. Hoje, como a ordem é destruir, a
Cinemateca encontra-se ameaçada de fechar as portas de vez. Ou de ter aviltadas
sua missão e vocação. Sobrevivente de incêndios e inundações, a instituição
pode sucumbir de vez à força negativa da ignorância.
A atividade audiovisual, imprescindível para a autonomia simbólica de um povo,
vê-se desse modo sob duplo ataque. Por um lado, dificulta-se a produção de
novas obras; por outro, tenta-se jogar a memória no lixo. Não há mesmo nada a
comemorar neste 19 de junho, dia do Cinema Brasileiro. Que sirva, ao menos, de
motivo para reflexão sobre a luz possível que o cinema ainda é capaz de lançar,
mesmo em tempos da maior escuridão.
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