‘O lugar da mulher é onde ela quiser’

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Lucy Tamborino

Muito se fala sobre grandes Organizações Não Governamentais (ONGs) e seus poderes de transformação frente à sociedade. Atuar no terceiro setor pode parecer algo grande e trabalhoso, e, por vezes, realmente o é. Mas, em Guarulhos, para uma menina na época com seis anos, juntar simples balas poderia ajudar crianças que viviam na pobreza.  

Com a pureza da infância, Beatriz Martins de Souza, hoje com 20 anos, fundou a “Olhar de Bia”. Bia, como é conhecida, hoje ainda trabalha em uma startup na área comercial e é palestrante. Atualmente a ONG está focada na educação, desenvolvendo, por exemplo, o programa Alicerce. Nele diversos adolescentes têm a oportunidade de ter contato com empresas e profissionais para aprenderem mais sobre o mercado de trabalho.

A jovem foi entrevistada pela Folha Metropolitana neste mês especial onde o jornal está apresentando as mulheres que têm influenciado de forma positiva e mudado a realidade ao redor.

Abaixo os principais pontos desta entrevista que pode ser conferida na íntegra no site www.fmetropolitana.com.br.

Folha Metropolitana – O que levou você a realizar projetos voluntários?

Beatriz Martins de Souza – Meu pai e eu sempre tivemos uma amizade. Um dia nós estávamos indo até a casa de um amigo dele e passamos em uma favela perto da avenida Paulo Faccini. O semáforo estava vermelho, ele parou o carro para esperar e vi uma cena nova: eram crianças com a mesma idade que a minha com roupas rasgadas, sujas e descalças. Elas pediram doces, mas naquele dia a gente não tinha nada para dar. Fiquei muito chocada, porque no meu mundo nunca tinha dado atenção para aquela cena.

Como foi tentar entender esta situação?

Eu perguntei para o meu pai por que as crianças estavam naquela condição e ele ficou sem graça de explicar um problema grande para uma criança de seis anos. No fim, me disse que os pais delas não tinham condição e um emprego e, por isso, as crianças ficavam daquela forma. Eu entendi, mas não achei certo.

Você tomou alguma atitude depois desta cena?

Isso aconteceu mais ou menos em agosto. A partir daí toda vez em que eu ia a algum restaurante e o garçom junto com o troco trazia balas, eu guardava e não falava nada para ninguém. Até que em dezembro um garçom queria fazer uma graça maior comigo e com as minhas irmãs e nos deu uma quantidade maior de balas. Então eu peguei todos os doces e não comi, continuei guardando. Na época eu tinha 1,10 metro e era toda desengonçada e foi quando meu pai percebeu e me perguntou o que estava acontecendo, já que eu adorava comer as balas antes. Para responder, fui ao meu quarto, peguei um pote que estava cheio das balas que eu vinha guardando e perguntei se ele se lembrava daquele dia que vimos às crianças no farol. Contei que naquele dia nós não tínhamos nada para dar e eu pensei em guardar os doces. Como criança de seis anos eu não tinha como ter um caminhão de roupa, de comida ou de brinquedo, as balas eram o que eu tinha.

Foi nesse momento que o projeto começou?

Meu pai ficou comovido e nós começamos algumas ações. Ele sempre quis ajudar e fazia algumas coisas pontuais, mas nunca tinha parado para fazer uma ação. Ele falou com alguns amigos, parentes e vizinhos e conseguimos doações de roupas e brinquedos para 600 crianças no Natal. Já na Páscoa foram duas mil crianças. Começamos sem pretensão nenhuma e por muito tempo nós só fizemos ações em datas comemorativas, mas o Olhar de Bia tomou conta da nossa vida. Como projeto social a ONG existe há 14 anos e com CNPJ e estatuto há seis. Nesse período foram mais de 100 mil pessoas impactadas direta e indiretamente.

Qual o posicionamento hoje do Olhar de Bia?

Estamos focados na educação. Hoje ajudamos as escolas públicas com oficinas de esporte e cultura para crianças e adolescentes e oferecemos o programa Alicerce, que atua na capacitação profissional. Estamos com um núcleo na EPG Professora Zulma Castanheira de Oliveira, no Cecap, e pretendemos abrir outros dois no Jardim São João e no Jardim das Nações. Temos parcerias com as secretarias Municipal e Estadual de Educação. 

Vocês também continuam realizando doações?

Nosso foco é a educação, mas não adianta levar educação se as pessoas estão passando fome. Nós continuamos recebendo doações de roupas, comidas e livros na nossa sede na rua Baltazar de Carvalho, 63 – Gopoúva. Se as crianças não estiveram alimentadas ou passando frio, nós não conseguimos realizar nosso projeto.

E como as pessoas podem ajudar?        

Hoje precisamos de pessoas doando seu tempo para auxiliar no projeto e na logística da doação. Às vezes quem vai doar está em um extremo de Guarulhos e quem vai receber em outro. Nós também precisamos de voluntários para dar aula de violão, jiu-jitsu e idiomas. Além de profissionais que possam ajudar na parte de design para divulgação nas redes sociais, comunicação e marketing. Somos uma ONG laica e apartidária e precisamos muito de apoio. Sobrevivemos de doações de pessoas físicas e jurídicas. Por mais que o nosso produto seja o amor e a transformação, precisamos manter nossa sede e dar auxílio aos nossos atendidos.

Quais foram os principais desafios para chegar até aqui?

O maior desafio é criar uma sustentabilidade financeira. Como ONG nós precisamos de funcionários e pagar nossas contas como qualquer outra empresa precisa. É muito difícil conseguir doadores que invistam recorrentemente. Sei que têm muitas pessoas com o coração grande, mas às vezes não sabem em qual causa ajudar ou não entendem a importância do investimento delas.

Você acredita que qualquer um consiga montar uma ONG?

Fundar uma ONG e empreender são atitudes muito parecidas. O significado de empreender é ter muita fé, foco, persistência, acreditar que você vai conseguir e entender porque você quer fazer aquilo. Falta tempo e dinheiro, mas você precisa acreditar que aquilo tem um propósito maior que pode transformar não só a sua vida, mas também de outras pessoas. A principal diferença é que você precisa gostar de gente, precisa ter amor, seu maior recurso serão as pessoas. Quando se pensa em uma ONG você fala de muito amor, emoção, causa e o que faz brilhar os olhos. Você precisa ter amor à causa de maneira única e saber que aquilo pode transformar a vida de alguém. Também é preciso sempre estar disposto a aprender, superar desafios, julgamentos e enfrentar muitas barreiras para fazer da sua ONG uma realidade.

Você foi criticada pela pouca idade que tinha quando fundou a ONG?

Tenho críticas todos os dias, até hoje. Têm dois lados, muita gente fala que é muita sorte, mas o nosso dia é muito desafiador, nós lutamos para sobreviver. Outras não veem uma ONG como trabalho, mas nós trabalhamos todos os dias. Não tem como parar no feriado, porque todo o dia existe alguém que está passando fome. São poucas pessoas para fazer muita coisa. Eu ficava triste com o que diziam, mas sempre foi uma missão. O Olhar de Bia me escolheu, não fui eu quem o escolhi.

Quais os seus planos para o futuro?

Para ONG desejo abrir este ano mais dois núcleos e ter mais oito edições do programa Alicerce. Queremos tornar Guarulhos referência na educação fora de aula, com este tipo de formação criamos formadores de opinião. Precisamos de pessoas que fazem acontecer e olham para fora da caixa. Esta é a nossa meta para os próximos cinco anos. Já no pessoal eu pretendo alavancar minha carreira de palestrante, porque é uma coisa que adoro fazer e uma forma de divulgar tanto a ONG, quanto mostrar para pessoas que é possível fazer o bem.

Você daria algum conselho para as mulheres?

Para as meninas e mulheres que estiverem lendo, eu quero dizer que não deixem os seus sonhos engavetados, nem a vontade de transformar e mudar o mundo. O Brasil e Guarulhos têm muitas heroínas e muitas vezes elas não estão aparecendo, por receio de mostrar os seus poderes. O lugar da mulher é onde ela quiser, basta ela acreditar nela mesmo. Não adianta falar de mudança e transformação se não pensarmos em igualdade.

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