Negros da Terra de Negos – Roberto Samuel

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Ah!!!! Você não sabe donde eu venho. Sou semente de uma terra gigante com gente forte, bonita e guerreira. Um lugar de reis e rainhas, príncipes e princesas! De homens honrados, altos, corajosos, guerreiros. Lugar de lindas mulheres, de olhos vivos e brilhantes, de dentes brancos como o marfim. Mulheres que alimentam sua prole com leite herdado de longínquos ancestrais e com o orgulho de ali ter nascido.  Venho da terra de leões dourados como o ouro e leoas poderosas. Elefantes gigantescos, girafas que alcançam o céu. Rinocerontes e hipopótamos que parecem verdadeiros tanques. Terra das velocidades incríveis das cheetas, do poder e imensa força dos grandes gorilas, da beleza dos leopardos, da imponência dos búfalos. Da beleza das cores e cantos dos pássaros.

Venho da terra de Nelson Mandela, de Nairóbi, lá do Serengeti onde a terra parece não ter fim, de Madagascar, de Ruanda e Angola.  Venho da imensidão do rio Nilo, das Pirâmides do Egito. Sou da terra onde se assenta o imponente monte Kilimanjaro e ainda carrego comigo o deslumbre de Zanzibar, que recebi de minha avó como herança. Lá aprendemos desde muito cedo a brigar como os leões, a domar elefantes e dromedários: sou herdeira de muitas histórias, de crenças, de lendas que não devem jamais ser esquecidas. Somos de terras de muitos reinos, de muita dor: venho de um lugar distante, venho do Cabo das Tormentas.

Aqui somos fincados como árvores estranhas, Baobas arrancadas da terra natal contra vontade. Por isso, nossa beleza pode parecer estranha aos seus olhos. Todavia nossa força, nossas folhas secas, nosso sangue arrancado a golpes de chicote ajudaram a cultivar e fertilizar essas terras por onde nosso povo foi espalhado feito sementes. Hoje, muitos dos meus já são pó deste lugar. Depois de séculos em terras estrangeiras, hoje sou mais Pau-brasil do que Baoba, embora a seiva daquela terra ainda corra em minhas veias feito o rio Zambeze, o rio Congo. Em noite de calor e lua cheia, os tambores da minha tribo ainda ecoam em meus ouvidos e em minha alma. Parecem um chamado, um lamento de dor, de saudade por seus filhos espalhados pelo mundo.

Pouco a pouco, foram tirando tudo de nós. Primeiro foi a liberdade, depois nossa humanidade, nosso orgulho e sonhos. Esperanças foram exterminadas uma a uma – as lembranças foram apagadas diante da dureza da labuta. Por um mundão de águas nos levaram pra muito longe de casa, distante de nossos pais, dos parentes, dos tambores, das fogueiras, das florestas, longe de nossos Orixás. Nossa língua calou e enterramos nossos dialetos em alguma curva do caminho. Para adoçar nossos ouvidos, salvamos uma ou outra palavra: samba, acarajé, farofa, fubá, quitute, berimbau, calango, marimbondo, quiabo, caçamba, caçula, cafuné, capanga, cochilar, moleque, muvuca, quitanda, tanga.

Esse querer sem fim nem finalidade, oculta os lamentos vindo do fundo da alma. Em noite de quente de luar, sente-se ao lado de plantas, feche os olhos, acalme o coração. Deixe a alma voar. Quem sabe você ainda escute o riso, o canto na voz das mulheres, os tambores de sua tribo festejando a chegada da estação da colheita. Caso seu coração permita, será possível até ver, pela janela da alma, o céu cheio de estrelas daquela terra e nossa gente dançando em volta de uma grande fogueira.

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