Botar nas estradas veículos movidos a combustão não
é mais suficiente para as gigantes do setor automotivo. Para muitos
especialistas, o setor vive a maior transformação de sua história, com soluções
que parecem saídas do cinema: veículos elétricos, sistemas de direção autônoma
e carros voadores. Com o objetivo de dar esse cavalo de pau, muitas montadoras
vêm flertando com o Vale do Silício para absorver rapidamente tecnologia e ter
mais acesso a capital. Com parcerias e aquisições surpreendentes, quem parece
estar chegando veloz e furiosa nessa disputa é a sul-coreana Hyundai.
O grande trovão indicando a guinada futurista da
Hyundai ocorreu no começo deste ano. O jornal IT Korea publicou que a empresa
está para fechar um acordo com a Apple para a fabricação de carros autônomos,
que seriam lançados em 2024 nos EUA. A gigante da tecnologia americana não se
pronunciou a respeito, mas a montadora confirmou que as duas sentaram à mesa de
discussões.
Antes disso, porém, a empresa já vinha
pavimentando o caminho para o futuro. Na edição de 2020 da CES, principal feira
de tecnologia dos EUA, a sul-coreana revelou um protótipo de táxi aéreo que
serviria para abastecer a frota do Uber, que desde 2016 tenta tirar da gaveta
projetos de veículos voadores. A parceria ganhou ainda mais importância: em
dezembro, o Uber vendeu sua divisão interna responsável projetos do tipo.
Antes da virada do ano, outro anúncio inusitado:
a Hyundai comprou 80% da Boston Dynamics, empresa que faz sucesso na internet
com vídeos de seus robôs altamente desenvolvidos. Mesmo em uma transação que
girou US$ 880 milhões, a sul-coreana imagina poder usar a tecnologia na
automação das fábricas e no desenvolvimento de carros, drones e, claro, robôs.
Parceria
Essas parcerias e compras estratégicas fazem
parte de um movimento geral de aquisições, fusões e parcerias da indústria de
veículos para ganhar força e investir em pesquisa e inovação, diz Ricardo
Bacellar, líder de setor automotivo da KPMG no Brasil.
Outras colaborações do mercado incluem a General
Motors e a Microsoft, que planejam lançar veículos autônomos. Além disso, a
própria GM é dona de parte das ações da Lyft, maior concorrente do Uber nos
Estados Unidos. A montadora chinesa Geely anunciou neste mês parcerias com as
conterrâneas Baidu e a Tencent para um carro inteligente e sem motorista.
Ao contrário das fabricantes de celulares e de
outros gadgets, que apresentam grandes saltos em seus produtos em um ou dois
anos, as montadoras têm de lidar com ciclos mais longos de inovação por conta
das grandes cadeias de produção que envolvem a fabricação de novos carros.
“Antes, as ondas de inovação no setor
tinham frequência mais espaçada”, lembra Bacellar. Agora, a pressão para
anunciar novidades tem feito as empresas do Vale do Silício, especialistas em
análise de grandes volumes de dados e na criação de interfaces amigáveis, sejam
as associações favoritas do ramo automobilístico. “E essas parcerias
reduzem o custo da onda de inovação para essas montadoras.”
A simbiose entre Vale do Silício e montadoras
vai além também da necessidade de unir o software e imensos volumes de dados às
fábricas de carros com décadas de experiência. Para as primeiras, representa o
futuro e a expansão dos negócios para um novo nicho. Para as últimas, é uma
alternativa sobrevivência num setor em que chegam cada vez mais concorrentes,
como as aéreas Embraer, Airbus e Boeing – todas têm projetos de carros voadores
Hugo Braga, professor e membro do Núcleo de
Inovação e Empreendedorismo na Fundação Dom Cabral, explica as vantagens dos
movimentos que A Hyundai tem feito. A Apple pode compartilhar o conhecimento
adquirido nas áreas de realidade virtual e realidade aumentada, tecnologias
essenciais para se integrar aos sensores dos carros inteligentes.
Já o Uber detém os dados de mobilidade urbana de
consumidores de todo o mundo, o que pode servir de base para entender como os
veículos podem se tornar mais eficientes em quilômetros rodados, por exemplo. A
excelência em robótica da Boston Dynamics, por sua vez, será útil na automação
das fábricas, essencial para poupar mão de obra e aumentar a eficiência de
produção industrial.
“Nesse cenário, a Hyundai entra no mercado
com alta adoção de tecnologias e isso faz dela uma empresa mais tecnológica, e
menos de produção industrial, como é hoje”, afirma Braga. Por outro lado,
a parceria reafirma o valor da companhia no ramo, sem ter de enfrentar a
concorrência com desenvolvimentos próprios feitos pela Apple, Google ou Über.
Percepção
O movimento das parcerias das empresas da
indústria automobilística com as de tecnologia também tem outra função: passar
uma mensagem positiva ao mercado.
“A associação da Hyundai com a Apple é
extremamente relevante para o mercado financeiro, que vive de percepções”,
diz Antônio Jorge Martins, coordenador dos cursos automotivos da Fundação
Getulio Vargas (FGV). “No momento em que se joga com a Apple, a empresa dá
um passo monumental em dizer que vai sobreviver.”
A estratégia parece estar funcionando. No dia em
que foi divulgado o primeiro rumor da parceria entre Hyundai e Apple, em 7 de
janeiro, as ações da montadora deram um salto de 19% no na Bolsa sul-coreana,
após o fechamento do mercado.
Para Raul Colcher, membro do Instituto dos
Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e sócio e presidente da Questera
Consulting, é difícil que o movimento de parcerias entre montadoras e big techs
seja freado. Mas o choque cultural na maneira de fazer negócios e nos ritmos de
desenvolvimento pode impedir que as colaborações saiam facilmente. “Essas
empresas querem abocanhar o máximo que der, mas vão ter de cooperar, mesmo com
choques de estilo e culturas empresariais diferentes.”
Bacellar, da KPMG, concorda: “O modelo de
inovação de erro e acerto das empresas de tecnologia é impossível de ser
reproduzido na indústria automotiva. O que acontece se der uma tela azul na
rodovia?”
Movimentos futuristas da Hyundai apontam caminho para as montadoras
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