Euclides da Cunha uniu ciência à arte e denunciou diversas violências

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A escolha das palavras certas para descrever o ambiente e revelar tragédias. Descortinar violências, “Brasis” diferentes e até a própria consciência. Nas mesmas frases e páginas, misturas de ciências e arte literária. O espírito combativo, curioso e metódico de Euclides da Cunha é anunciado desde as primeiras páginas de Os Sertões (1902), obra monumental da literatura e do jornalismo brasileiro (disponível para leitura em domínio público), segundo explicam estudiosos do consagrado escritor, que nasceu em 20 de janeiro de 1866 (há 155 anos). 

Mesmo depois de tanto tempo – a primeira edição do livro saiu em 1902 -, os especialistas ouvidos pela Agência Brasil argumentam que a profundidade do trabalho do brasileiro, marcado pelo olhar científico e ao mesmo tempo artístico, explica a atualidade dos seus escritos e a necessidade de ser revisitado no século 21.   

O autor, ex-oficial do Exército e engenheiro, escrevia para o jornal O Estado de S. Paulo, e foi para a Bahia reportar o que acontecia na Guerra de Canudos (que durou entre novembro de 1896 a outubro de 1897). Euclides esteve na região entre 10 de setembro e 3 de outubro (23 dias) e publicou suas impressões no jornal como Diário de Uma Expedição, a partir das 22 cartas e 55 telegramas escritos. Os trabalhos seriam a inspiração para o livro que seria publicado cinco anos depois, dividido em três partes:  A TerraO Homem e A Luta

Euclides se surpreendeu bastante com o que viu e vivenciou. “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”, escreveu ele logo na nota preliminar. Segundo pesquisadores, diante do que flagrou, ao invés de compilar relatos e se ater a uma versão do governo central, Euclides mergulhou nas histórias dos sertanejos (sob a liderança polêmica do religioso Antônio Conselheiro), nos contextos amplos do cenários e do ambiente da caatinga e buscou as causas do acontecimento. “Ele sempre acreditou no consórcio entre a ciência e a arte”, afirma o professor de literatura brasileira e hispânica na Universidade da Califórnia, Leopoldo Bernucci, em entrevista por videoconferência. “Euclides tinha uma mente extremamente curiosa em um período marcado pelo culto à ciência”.

Obra de arte

Bernucci publicou em 2001 versão comentada de Os Sertões e, em 2021, chegará à sexta reimpressão, sempre com novas revisões para facilitar o entendimento de um livro que mexe com a cabeça do leitor. “A obra de Euclides é um conjunto extraordinário de conhecimentos. Trata-se de uma leitura difícil, com saberes técnicos e científicos. Mas ele se propôs a tratar do fenômeno de Canudos. A partir do momento que se lê essa grande obra, pode-se verificar que tudo ali está organizado e articulado”. 

O livro é considerado uma obra de arte desde a sua publicação. Em 1903, o crítico Araripe Júnior escreveu que não era possível criticar o trabalho. “A emoção por ele produzida neutralizou a função da crítica. E, de fato, ponderando depois calmamente o valor da obra, pareceu-me chegar à conclusão de que Os Sertões são um livro admirável, que encontrará muito poucos, escritos no Brasil, que o emparelhem”. José Veríssimo destacou que o livro revelava “um homem de ciências”, “um homem de pensamento”,  e um “homem de sentimento”. A obra lhe valeu a indicação à Academia Brasileira de Letras, em 1903.

Além de dispôr a história da revolta e do papel de Antônio Conselheiro, Euclides utilizou um grupo de saberes que incluiu botânica, geologia, sociologia, antropologia, história das religiões e conhecimentos amplos sobre a vida e história militar. 

Aliás, a formação de Euclides em escolas militares tem influência decisiva, segundo pesquisadores, em seu desenvolvimento intelectual. “As escolas e a carreira militar são decisivas na vida dele. O Exército estava na vanguarda do processo histórico daquele período. Claro que os professores e as referências que ele teve influenciam na obra, que é alta literatura”, afirma a professora Walnice Galvão. Ela pesquisa vida e obra de Euclides da Cunha há mais de 50 anos. A intelectual, docente emérita da Universidade de São Paulo (USP), publicou 12 livros sobre o autor. “Além da formação, outro fato transformador na vida dele é a cobertura em Canudos”, salientou.

“Humildade”

Para os pesquisadores da obra de Euclides da Cunha, o escritor foi para Canudos certo que encontraria ali uma revolta estimulada pelos monarquistas contra a recém-nascida república, proclamada em 1889. Mas o autor descobre que essa não é a história verdadeira. 

Não havia relação com disputa política e Euclides mudou de ideia e de foco durante a expedição. “Está estampada em todas as páginas o dilaceramento de consciência que ele viveu ao presenciar a violência do Estado contra os sertanejos”, afirma a professora Walnice Galvão. 

É nesse contexto que ele considera um crime o que ocorreu ali, com o massacre dos moradores e das cinco mil casas do lugarejo. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu na abertura do capítulo três. Essa mudança de ideia, segundo Leopoldo Bernucci, revela-se como um ato de humildade por parte de Euclides, ao deixar o acampamento da expedição promovida pelo governo para se embrenhar na caatinga. A historiografia registra que pelo menos 20 mil pessoas morreram no episódio.

Walnice Galvão destaca que Euclides teve uma virada de consciência rápida. “Ele ficou um pouco menos de um mês em Canudos, mas foi o suficiente para ter uma nova percepção do que ocorria. Na verdade, ele levou um choque diante do que descobriu. É um trauma da vida dele”.

Preocupação ambiental

O professor de literatura Leopoldo Bernucci prepara, junto com o pesquisador Felipe Rissato, uma obra sobre 1,4 mil correspondências enviadas e recebidas por Euclides da Cunha. A estimativa é de pelo menos mais um ano de coleta dessas cartas oficiais e também de cunho pessoal do autor. Chamam a atenção nos materiais a preocupação de Euclides com o meio ambiente. 

Inclusive, após publicar Os Sertões, o escritor foi convidado para chefiar a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, na Amazônia. Nas cartas enviadas para o Barão do Rio Branco, principalmente no ano de 1905, detectou desmatamento nos seringais e também exploração dos trabalhadores. 

“Ele sempre revelou uma preocupação ambiental com o país e uma consciência ecológica bastante forte. Podemos dizer que ele tem uma atitude pioneira de denúncia da devastação das matas”, afirma Bernucci. Outro aspecto dessa atenção está na parte em que o autor discute as secas no Nordeste e suas origens (leia especial sobre história das secas produzido pela Agência Brasil). Ele havia tratado do tema para o jornal e incorporou-o em Os Sertões, inclusive sobre a relação entre desmatamentos com períodos de seca e efeitos de chuvas.

 “Depois, na Amazônia ele viu as condições precárias e de escravização a que nordestinos – em particular cearenses fugidos da seca – estavam trabalhando para a indústria da borracha”, diz o pesquisador. A expedição à Amazônia, segundo estimava Euclides, renderia o livro Paraíso Perdido. Mas, o autor morreu antes de conseguir terminar o trabalho e esmiuçar em livro a denúncia. Na volta da expedição a serviço, quando tinha 43 anos de idade, trocou tiros com o amante da esposa, o militar Dilermando de Assis, acabou alvejado e não resistindo aos ferimentos. O episódio ficou conhecido como “tragédia da Piedade”, bairro do Rio de Janeiro onde ocorreu o fato.

A morte precoce impediu o novo trabalho, mas os pesquisadores ainda descobrem escritos inéditos e tentam trazer à luz olhares sobre o autor que entrou para a história. Para o professor Arnaldo Godoy, que estuda as áreas de direito e literatura, a obra de Euclides da Cunha é muito importante porque congrega diferentes saberes. Ele a utiliza nas aulas para ajudar os estudantes a entenderem as dinâmicas sociais do Brasil. “Trata-se de uma descrição eletrizante e épica, e oferece insumos jurídicos para aprendizagem. A literatura pode nos ajudar a suscitar uma série de debates sobre temas que ele traz tanto em Os Sertões como nas correspondências”. 

Walnice Galvão também estudou as correspondências de Euclides e de autores brasileiros que se inspiraram na obra do autor. “Seguramente, Guimarães Rosa leu muito Euclides”. A mesma estudiosa debruçou-se oito anos sobre Os Sertões para a publicação de uma edição crítica. “É uma grande obra de arte literária que faz a gente quebrar a cabeça. É um monumento para a gente entender o Brasil e a sua história, e que deve ser lido desde a primeira parte (A Terra), que é pura poesia”. 

Uma prosa poética sem ficção, e de palavras duras da realidade. “O autor aponta o que é ou não real. Mas quem decide o que é literatura é o leitor”, explica Bernucci. Euclides era rígido com dados, e defende, na introdução de sua obra, um conceito do francês Hippolyte Taine: de que o narrador deve evitar meias verdades, que são “meias mentiras”, e que não adianta “copiar os dados” se for “desfigurada a alma”. Alma e precisão, não necessariamente nesta ordem, atravessaram os sertões de Euclides.

Euclides: Os Sertões é marco do jornalismo

O livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicado, pela primeira vez em 1902, é considerado um marco também para o jornalismo brasileiro (e não apenas para a literatura). Um dos méritos, além da inovação dos caminhos narrativos para história de não ficção, foi se contrapor a notícias falsas que eram publicadas em jornais da Região Sudeste sobre a Guerra de Canudos. Havia uma ideia que corria pelos veículos e pela opinião pública que a revolta dos sertanejos, na verdade, era uma tentativa de restabelecer a monarquia na década seguinte da proclamação da República.

A professora Walnice Galvão, docente emérita da Universidade de São Paulo (USP), investigou os discursos dos jornais da época no livro No Calor da Hora. Estas versões, inclusive, trouxeram uma ideia equivocada para o próprio Euclides da Cunha. “Eu percebi, com clareza, como a mídia jornal influenciou o país. Convenceram a opinião pública brasileira que Canudos era uma conspiração restauradora da monarquia, e todo mundo acreditou. Essas notícias falsas estavam nos editoriais, reportagens e até nas caricaturas”, diz, lembrando que os jornais, em tempos sem rádio ou TV, faziam o serviço principal de comunicação.

O professor Leopoldo Bernucci, da Universidade da Califórnia, também chama a atenção sobre o avanço das fake news (notícias falsas) à época, mas reitera que Euclides da Cunha não conseguiria avançar nas pesquisas que lhe renderam o término de Os Sertões sem apoio dos jornais impressos. “Ele tinha também uma ligação muito forte com os jornais e lhe serviu de fontes de informação importantes. Percebi que há diferenças de datas e números em documentos. Uma nova pesquisa que pode ser feita é comparar os documentos para precisar dados sobre eventos históricos.”

Para o professor de direito Arnaldo Godoy, que também é pesquisador em literatura, os escritos de Euclides, bem como a própria trajetória trágica pessoal do escritor, são capazes de provocar estudos sobre notícias falsas. “Considero muito importante tentar compreender o papel da comunicação na construção ou na desconstrução de um criminoso”, afirmou.

Mistura de jornalismo e literatura

Para o professor de jornalismo Edvaldo Pereira Lima, um dos principais pesquisadores de jornalismo literário do país, a obra Os Sertões é marco inquestionável do gênero no país. Ele contextualiza que, em outras coberturas de conflitos bélicos de guerra civil nos Estados Unidos e na África (por parte de correspondentes europeus), existiam iniciativas pioneiras de amadurecer essa escola narrativa que excedesse a ideia de uma notícia crua. “Isso tem relação com a dificuldade de transmitir a intensidade de um campo de batalha de uma forma fria ou preso apenas à informação.”

No Brasil, o primeiro caso é na obra de Euclides. “Muito mais do que informar, Euclides procura trazer uma leitura completa de compreensão de realidade, trazendo as múltiplas causas e a atenção principal na figura humana. Os Sertões faz com que o leitor compreenda de forma integral aquele acontecimento, em suas diferentes dimensões”, afirma Pereira Lima.

O pesquisador explica que, no jornalismo literário,  as pessoas são tratadas em profundidade e que, na obra euclidiana, há uma leitura quase psicológica. “Jornalismo literário é literatura também. Entendo como literatura tanto a ficção como a não ficção. Um estilo pautado pela literatura do real. O que caracteriza a literatura é a qualidade e a excelência do nível narrativo. E isso é marcante com Euclides por causa de sua sensibilidade ao trazer aspectos sutis da realidade”. 

Esses aspectos servem para denunciar, investigar e ser caminho inspirador para a transformação social e humana. “Ler a obra é uma experiência de sensibilização para ‘ressignificar’ a realidade. Uma grande experiência de transformação de consciência para os cidadãos brasileiros”, afirma.

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