A música nos oferece às vezes uma “dolorosa
beleza”, escreveu vinte anos atrás o pianista de jazz Brad Mehldau, então
com 28 anos, num ensaio sobre o Adagio do Quinteto de clarinete e cordas em si
menor opus 115 de Brahms. “É uma dor adocicada que te atinge no estômago,
como o primeiro gole de um bom malte assim que chega em casa numa fria noite de
novembro. Você respira, cavalgando a dor sombria, e a música o recompensa em
breve (…) Não há nada remotamente parecido com esperança nessa música, e é
exatamente isso que lhe dá sua humanidade. Sua profunda resignação soa
verdadeira e oferece uma espécie de empatia. Em um desses truques da arte, a
música em si (…) proporciona uma presença humana consoladora.”
Tem tudo a ver com estes nossos tempos
pandêmicos. Mehldau é refinado e certeiro, lírico e poético. Mantém o rigor de
quem pensa seu ofício a sério – seja na frente de um teclado de computador ou
das 88 pretas-e-brancas do Steinway. Músico ideal para produzir uma reflexão
musical sobre a pandemia que assola o planeta. Isolado com a família em
Amsterdã, compôs a suíte April 2020. Doze peças curtas, que antecedem três
gemas do “great american songbook”.
O surpreendente mesmo, é a suíte, uma espécie de
diário musical da pandemia, que a todo momento mistura doces lembranças de um
passado muito recente com a resignada consciência de que aquele é um tempo
muito distante. Como em Remembering before all this: o que era para ser um
tributo aos bons velhos tempos, soa mesmerizante. A palavra é meio
estrambótica, mas é catatônico o sentido destas lembranças. E aqui, diga-se,
Brad Mehldau acaba se rendendo ao minimalismo tipo Philip Glass, quase uma
praga nas músicas de hoje em dia que almejam ser “criativas”. Mas,
inteligente, não abusa do truque. Prefere mesclá-lo com um sentimento agridoce
onipresente.
Os dias todos iguais, o gesto de acordar de
manhã sempre maquinalmente repetido, a desesperança de comportamentos mecânicos
se repetindo. Isso tudo já se instaura na primeira peça, Waking up e fica até
engraçado na terceira peça, Keeping distance, mantendo distância, referência
verbal aos 2 metros que nos separam uns dos outros. O que seria outro truque
banal – a separação sonora entre as mãos direita e esquerda – soa bizarro,
porque Mehldau introduz estranhamentos, como tonalidades diferentes entre uma e
outra. Cada mão é conduzida por apenas uma nota de cada vez, num vagaroso
contraponto que parece não ter fim. Às vezes chegam perto de um acordo
harmônico, mas frustra rapidamente nossas expectativas e distanciam-se
novamente. Um achado digno de Bach, o outro Deus a quem ele dedicou um álbum
precioso.
Sabemos tão pouco sobre o futuro próximo. Em
Uncertainty, de 1’51, fragmentos de temas se esboçam, mas não chegam a se impor
na mão direita, desassossegada pelo insistente ostinato da esquerda.
Esperando
A nona peça, Waiting chega quase aos 4 minutos.
Esperar é o que de fato fazemos. Uma nota-pedal perene inclemente, mas suave,
dá o tom a notas desoladas, isoladas, na mão direita. Economia de meios, pura
invenção.
As duas peças seguintes, In the Kitchen e Family
Harmony, viram momentaneamente o jogo tedioso da espera sem fim e da incerteza.
A primeira, buliçosa, com um groove tipo boogie woogie transfigurado, evoca os
afetos tranquilos de um almoço comum; e a segunda soa quase como um hino de
louvor à família. “Devido ao tempo abundante e à proximidade”, diz o
pianista, “houve também uma oportunidade bem-vinda e jamais ocorrida de me
conectar mais profundamente com minha família”. É um sentimento de
comunhão que desemboca na canção de ninar (Lullaby), um dos pontos altos da
suíte. Mehldau diz que estas três peças “relatam a harmonia que
encontramos um com o outro, fazendo refeições juntos”. E lembra carinhosamente:
“Lullaby é para todos que podem achar que está difícil dormir agora”.
Voltemos ao artigo de vinte anos atrás. Nele,
Mehldau dá a chave de seu comportamento. Não cita, mas aproxima-se da prática
usual dos músicos do século 18. Bach adorou os concertos para violino de
Vivaldi e os reinventou colocando cravos como solistas. “Primeiro sou um
fã”, diz. “Depois sou enfeitiçado por uma música. E só depois disso –
seja Brahms, Jelly Roll Morton ou klezmer -, elas encontram um jeito de
frequentar meu vocabulário por muito tempo.”
Por isso, o álbum, que só foi lançado esta
semana em versão digital pela Nonesuch/Warner – e também em vinil numa edição
especial vendida a 100 dólares nos EUA com toda renda revertida para a Fundação
Nacional dos Músicos de Jazz -, termina com três canções que estão na corrente
sanguínea do pianista: Don’t let it bring you down, de Neil Young (Não deixe
isso te derrubar); New York State of Mind, de Billy Joel (declaração de amor à
cidade adorada por ele, que no finalzinho evoca o tema da Rhapsody in Blue de
Gerhwin); e Look for the Silver Line, canção de um musical da Broadway de 1919
composta por Jerome Kern e com versos de B.G. DeSylva, lembrando que, quando
nuvens cinzentas aparecem, saiba que em algum lugar o sol brilha/Sempre haverá
conflito e tristeza/tente encontrar o lado ensolarado da vida.
A música como um afago
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