O
baterista Jimmy Cobb morreu aos 91 anos preocupado com o que seria do jazz
quando a geração dos garotos que não precisavam mais sequer ver uns aos outros
para gravar algum tema pela internet começasse a dar seus frutos. Sua história
era o exemplo do quanto era valioso estar ao lado das pessoas, desde o dia em
que Miles Davis chegou ao estúdio para a primeira gravação de Kind of Blue sem
nenhuma partitura, olhou para ele e disse: “Jimmy, você sabe o que fazer.
Apenas faça parecer que está flutuando”. O tom da voz de Miles, mais do
que a frase, já havia dito tudo.
Cobb partiu no último dia 24 deixando mais do
que a própria história. Além de ser o último remanescente dos homens que
estiveram com Miles no 30th Street Studio, em Nova York, entre 2 de março e 22
de abril de 1959 para a gravação de um dos mais importantes álbuns de todos os
tempos, ele era também um dos últimos expoentes ativos e robustos dos anos
1950, a época em que se extraiu ouro puro do jazz. Os outros acompanhantes de
Miles, Cannonball Adderley no sax alto (exceto em Blue in Green); John Coltrane
no sax tenor; Bill Evans ao piano (exceto em Freddie Freeloader); Wynton Kelly
(piano em Freddie Freeloader) e Paul Chambers no baixo, todos já haviam
partido.
Assim como todos que lançaram obras-primas em
1959, o misterioso ano que desafia espiritualistas, materialistas,
criacionistas e terraplanistas a explicar o que levou tantos álbuns a saírem ao
mesmo tempo. O pianista Dave Brubeck, de Times Out; o baixista Charles Mingus,
de Ah Um; o saxofonista Ornette Coleman, de The Shape os Jazz to Come; o
baterista Art Blakey, de Moanin’, com o Jazz Messengers; o vibrafonista Cal
Tjader, de Monterey Concerts, e muitos outros que podem chegar até o Brasil sem
esforço quando lembramos que João Gilberto fez Chega de Saudade, o álbum, no
mesmo ano apocalíptico ao contrário de 1959.
A geração de 1950 tem um último titã, na opinião
do pesquisador e maior autoridade em jazz no País, Zuza Homem de Mello. E seu
nome é Sonny Rollins. Sonny, aos 89 anos, segue produtivo e quem duvidar de sua
capacidade de ainda desenhar temas e improvisos espirituais em seu sax tenor
pode acessar agora mesmo, nas plataformas digitais, seu álbum Way Out West, de
2017, e ouvir o que ele faz logo no tema de abertura, I’m An Old Cownhand.
“De todos que eu ouvi dessa turma dos anos 1950, só Sonny está vivo”,
diz Zuza, que esteve em Nova York para estudar música primeiro na School of
Jazz e, depois, na Julliard School, justamente nos anos de extração das
pepitas, entre 1957 e 1959. “Era impressionante a quantidade de concertos
e clubes com sessão dupla. Nova York nunca mais foi aquilo.” Uma das
noites em que estava no Five Spot Cafe, Zuza viu um garoto de 18 anos chegar
por volta de 1h da manhã, cumprimentar Monk e John Coltrane e sentar-se à
bateria para fazer um solo “de quase meia hora” que o deixou, em suas
palavras, “bestificado”. “E olha que eu havia visto Gene Krupa e
Philly Joe Jones.” O garoto era Elvin Jones.
Há menos de um mês, o New York Times convidou
Sonny Rollins a refletir sobre o jazz e seu tempo. Depois de evocar o autor
Aldous Huxley e afirmar que a tecnologia “é apenas um modo mais rápido de
fazer as coisas”, Sonny também tinha um tom preocupado ao falar, como se
lembrasse aos jovens de que nem um século de estudos de escalas terá valor se
eles não viverem a vida antes de tocar. E que o improviso não pode ser o
simples acesso a informações musicais baseado em formas predeterminadas, mas um
estágio elevado de consciência. “Se eu quiser improvisar durante Mary Had
a Little Lamb, por exemplo, primeiro eu a memorizo. Isso porque, quando estou
no palco, quero deixar minha mente completamente livre. Mary Had a Little Lamb está
lá, e eu posso voltar a ela se quiser, mas o que estou criando é maior do que a
soma das partes.”
A despedida de uma geração que pensa assim não
pode ser a despedida de um pensamento que eles compartilharam por décadas,
depois de encontrarem caminhos para uma criação mais humanista do que técnica.
Miles Davis falava sobre música como se falasse sobre um passeio no parque:
“Meu futuro começa quando eu acordo todas as manhãs. Todos os dias
encontro algo criativo para fazer com a minha vida”. Thelonious Monk, mais
do que sons, queria sentir também o silêncio de seus músicos: “Não toque o
tempo todo. O que você não toca pode ser mais importante do que o que você
toca”. Mais do que música, John Coltrane buscava o sagrado: “Deus
respira plenamente por meio de nós, tão suavemente que nem sentimos”. Duke
Ellington, que atravessou dos anos 20 aos 50, via à sua frente uma generosa
provocação quando se deparava com um entrave na inspiração: “Um problema é
a chance para você fazer o seu melhor”.
O jazz dos anos 1950 pode ser considerado o
exato ponto de equilíbrio em seu nível de maior abrangência, comunicando-se
entre a prolixidade de seu pai, o bebop virtuoso dos anos 1940, e a
desconstrução que viria depois com o free dos anos 1960 em diante. “Eu
acrescentaria a esta lista dos anos 50, dos ainda vivos, o (baterista) Roy
Haynes e o (pianista) Ahmad Jamal”, diz Toy Lima, produtor de festivais de
jazz dentro e fora do País. Toy localiza a era de ouro no final dos anos 50 e
lembra de alguém que pode explicar a razão da concentração de tantos álbuns
clássicos entre 1957 e 1960: um engenheiro de som chamado Fred Plaut. “Ele
fomentou vários discos dos mais importantes do jazz, a começar pelo Kind of
Blue. Era quem cooptava todo mundo, um cara pouco falado, mas muito importante.
O engenheiro da época de ouro do jazz.” Quem falou sobre Plaut a Toy foi o
próprio Jimmy Cobb, que ele trouxe ao Brasil em 2009. “Plaut passava nos
clubes da Rua 52 para chamar os músicos a ir ao estúdio testar microfones. Um
cara fundamental.”
O jornalista Ramiro Zwetsch, DJ e responsável
pelo site Radiola Urbana, sente que a ruptura do bebop para o jazz dos anos 50
trouxe, mais do que uma sub linguagem estética do jazz, uma nova forma de se
relacionar com a própria música. “Havia no bebop uma correria para se
conseguir fazer o solo mais virtuoso. Quando Miles e John Coltrane se libertam
disso, eles buscam um novo caminho.” E o que explica o fato de terem
surgido todos ao mesmo tempo, além do nome de Fred Plaut como o catalisador?
Zuza tem uma aposta. “Faço a mesma pergunta no Brasil. Por que será que
surgiram todos juntos? Chico, Gil, Caetano, Milton, Edu Lobo e tantos outros? O
que houve com as mães que pariram esses filhos?” A resposta, para Zuza,
está em ainda outra pergunta: “O que eles ouviam?”. “E o que
eles ouviam era João Gilberto”, responde.
Sendo assim, a pergunta é o que a turma de 1950
ouvia para chegar ao jazz que passou a fazer? E a resposta é, quase
paradoxalmente, “bebop”. O mesmo bebop evolutivo de New Orleans os
inspirou a ser tão autênticos quanto, a ponto de se despedirem com obras que
geração nenhuma consegue superar.
Os últimos leões do Jazz
- PUBLICIDADE -